
Pata por pata, um leopardo realiza seu desfile chegando bem perto da objetiva, e a objetiva chegando bem perto dele. Vai da direita para esquerda do quadro e retorna para o ponto de partida, realizando novamente o movimento repetidas vezes. Seu andar é sensual, sereno, quase flutuante, e seu corpo camufla-se no breu do espaço parcialmente iluminado. A luz forte revela também a terra com pedras que ele pisa, as plantas que o cercam, e nas sombras, barras de ferro de uma jaula que nunca entra em quadro. A câmera de Fanderl é segura, firme, também serena e sensual, e não demonstra nenhum sinal de amedrontamento com o predador diante da câmera.
O leopardo se revela cada vez mais concentrado. Anda em círculos e sempre olha para frente, sugerindo uma atormentação, possivelmente pela situação do encarceramento. O animal não mira sequer um instante para Fanderl e sua câmera. Apesar da inquietação, as eventualidades além da jaula parecem não o afetar. Tanto quanto o ambiente extra imagem não desestabiliza Fanderl, nem implica na unidade do filme; não há um mundo para além do pictórico na película, nem se quer a jaula importa. A concentração é total; existe apenas a diretora e o leopardo.
As cores escapam. Um amarelado que parece extrapolar a forma do animal, como pintado à mão, e o verde forte das poucas plantas reflete no pelo branco da parte inferior do leopardo. A cor de seus olhos parece uma mistura em aquarela de todos os tons que passam pelo quadro; em constante mutação a cada volta.
O animal com toda sua elegância parece aos poucos cansar. Suas piscadas vão pesando. O olhar concentrado está cada vez mais perdido, sem direção, apesar da retidão. A câmera de Fanderl gradativamente altera seu comportamento: há mais cortes e as imagens se fecham em diferentes partes do bicho. A alteração é sensitiva. Pouco a pouco a maneira de filmar se ajusta às intuições perceptivas do instante; uma comunhão cada vez mais íntima entre sujeito e objeto, regida pelo olhar de Fanderl. A única ordem imutável presente em todos os seus filmes é a montagem na câmera Super 8, que permite, nas palavras da diretora: “concentrar e mergulhar no fluxo do tempo, filmando, por assim dizer, tempos e eventos que acontecem no tempo, buscando o “gesto” que pudesse integrar a complexidade de tudo o que acontece no “aqui e agora” quando filmei e pela expressão da reciprocidade entre o que está acontecendo em mim e fora de mim.“
Texto completo em: https://multiplotcinema.com.br/2021/02/constelacoes-o-cinema-de-helga-fanderl/
por Gabriel Linhares Falcão
07/02/2021